O Panteísmo

 



Por 'Abdu'l-Bahá

Pergunta – Como entendem os teosofistas e os sufis a questão do panteísmo?? (1) Que significa, e até que ponto se aproxima da verdade?

Resposta – Saibam que o assunto do panteísmo é antigo; não é crença restrita aos teosofistas e sufis, pois alguns sábios da Grécia a tinham, assim como disse Aristóteles: “A simples verdade são todas as coisas, mas não é nenhuma delas.” Neste caso, “simples” é o contrário de “composto”; é a Realidade isolada, pura e sagrada além da composição e divisão, e que se resolve em inúmeras formas. Portanto, a Existência Real são todas as coisas, mas não é nenhuma das coisas.

Numa palavra, os que acreditam no panteísmo acham a Existência Real comparável ao mar, e os seres às Suas ondas. Estas ondas, ou sejam os seres, são inúmeras formas daquela Existência Real, e assim a Santa Realidade é o Mar da Preexistência, (1) sendo as incontáveis formas das criaturas as ondas que surgem.

De modo semelhante, comparam essa teoria à verdadeira unidade e à infinidade dos números: a verdadeira unidade reflete-se nos graus dos números infinitos, pois os números são a repetição da verdadeira unidade. Assim, o número dois é a repetição de um, e é o mesmo no caso dos outros números.

Uma de suas provas é esta: todos os seres são conhecidos de Deus, e o conhecimento sem coisas conhecidas não existe, porque o conhecimento se relaciona com aquilo que existe e não com a inexistência. A pura inexistência não pode ter especificação ou individualização nos graus do conhecimento. A realidade dos seres, portanto, sendo conhecida por Deus, o Altíssimo, tem a existência que o conhecimento tem, (2) desde que possua a forma do Conhecimento Divino; e é preexistente, assim como o Conhecimento Divino é preexistente. Logo, as coisas conhecidas são igualmente preexistentes e as individualizações e especificações dos seres, sendo conhecimentos preexistentes da Essência da Unidade, são o próprio Conhecimento Divino; porque a realidade da Essência da Unidade, a do conhecimento e as das coisas conhecidas, têm uma unidade absoluta que é real e estabelecida. Se assim não fosse, a Essência da Unidade se tornaria o lugar de múltiplos fenômenos, pressupondo isto a multiplicidade de preexistências, o que seria absurdo.

Está assim provado que as coisas conhecidas constituem o próprio conhecimento, e este a própria Essência; quer isso dizer: o Conhecedor, o conhecimento e as coisas conhecidas são uma simples realidade. E se alguém imaginasse qualquer coisa fora disso, seria necessário admitir a multiplicidade de preexistências e o encadeamento; (1) e preexistências vêm a se tornar inúmeras. Já que a individualização e a especificação dos seres no conhecimento de Deus são a própria Essência da Unidade, não havendo entre elas diferenças alguma, há apenas uma verdadeira Unidade, sendo que todas as coisas conhecidas se difundem e incluem na realidade da Essência única. Quer isso dizer: segundo o modo da simplicidade e da unidade, constituem elas o conhecimento de Deus, o Altíssimo, e a Essência da Realidade. Quando Deus manifestou Sua glória, essas individualizações e especificações dos seres que tinham uma existência virtual, isto é, eram uma forma do Conhecimento Divino, tiveram sua existência substancializada no mundo exterior; e esta Existência Real resolveu-se a Si Própria em infinitas formas. Tal é a base de seu argumento.

Os teosofistas e os sufis dividem-se em dois ramos. Um destes, composto pela maioria, acredita no panteísmo simplesmente em espírito de imitação, sem compreender o que queriam dizer seus sábios de renome; pois a generalidade dos sufis acredita que o significado Ser é existência geral, tomada substantivamente, sendo compreendida pelo raciocínio, pela inteligência; isto é, que o homem a compreende. Em vez disso, a existência geral é um dos acidentes que penetram a realidade dos seres, e as qualidades destes são a essência. Esta existência acidental, dependente dos seres, é como outras propriedades das coisas que elas dependem. É acidente entre acidentes, e sem dúvida o que é a essência é superior àquilo que é o acidente. Pois a essência é a origem, e o acidente a consequência; a essência depende de si própria, e o acidente necessita de outra coisa, ou seja, de uma essência de que depender. Segundo seu argumento, Deus seria a consequência da criatura, teria necessidade dela, e a criatura seria independente Dele.

Por exemplo, cada vez que os elementos isolados se combinam segundo o sistema divino universal, um ser entre os seres vem ao mundo. Isto é, ao combinarem-se certos elementos, uma existência vegetal é produzida; quando outros se combinam, formam um animal; e ainda outros, as várias criaturas. Assim a existência das coisas é conseqüência de sua realidade: como seria possível que essa existência – um acidente entre acidentes, e necessitando de uma essência, de que depender – fosse a Essência Preexistente, Autor de todas as coisas?

Opinam, no entanto, os sábios iniciados entre os teosofistas e sufis que estudaram o assunto, haver duas categorias de existência. Uma é a geral, a compreendida pela inteligência humana, isto é, um fenômeno, um acidente entre acidentes; e a realidade das coisas é a essência. O panteísmo, porém, não é aplicável a esta existência geral, imaginária, mas somente à Existência Verdadeira, livre e santificada acima de qualquer outra interpretação. É por Seu intermédio que existem todas as coisas; é a Unidade através da qual todas as coisas vieram ao mundo, tais como matéria, energia e essa existência geral compreendida pela mente humana. Eis a verdade da questão segundo os teosofistas e sufis.

Enfim, quanto à teoria de que todas as coisas existem em virtude da Unidade, todos estão de acordo – isto é, Profetas e filósofos. Mas há uma diferença entre eles. Dizem os Profetas: o Conhecimento Divino não necessita da existência de seres, enquanto o conhecimento da criatura pressupõe a existência de coisas conhecidas; se o Conhecimento Divino tivesse necessidade de qualquer outra coisa, seria o conhecimento da criatura e não o de Deus. O preexistente é diferente do fenomenal, e este contrário àquele; o que atribuímos à criatura, ou sejam as necessidades dos seres contingentes, negamos para Deus, pois a pureza, a santificação de imperfeições, é uma de Suas propriedades necessárias. Assim, no fenomenal, vemos ignorância, enquanto que no Preexistente verificamos conhecimento; no fenomenal vemos fraqueza, no Preexistente, poder; no fenomenal percebemos pobreza, no Preexistente atestamos riqueza. O fenomenal é, pois, a fonte das imperfeições, e o Preexistente a soma das perfeições. O conhecimento fenomenal exige coisas conhecidas; o Preexistente é independente da existência destas. Não há, portanto, preexistência de especificação e individualização de seres que são as coisas conhecidas por Deus, o Altíssimo; nem podem Seus atributos perfeitos, divinos, ser compreendidos pela inteligência, de modo que nós possamos decidir se o Conhecimento Divino tem ou não, necessidade das coisas conhecidas.

Vimos, pois, o argumento principal dos sufis, e se desejássemos mencionar todas as suas provas e explicar suas respostas, isto levaria muito tempo. A prova decisiva, o argumento claro, dos sufis e teosofistas – pelo menos de seus sábios, foi o que vimos.

A questão, porém, da Existência Verdadeira em virtude da qual existem todas as coisas – isto é, a realidade da Essência da Unidade através da qual todas as criaturas vieram ao mundo – isto é admitido por todos. A diferença reside naquilo que dizem os sufis: “A realidade das coisas é a manifestação da Unidade Verdadeira”, enquanto os Profetas afirmam que “essa realidade emana da Unidade Verdadeira”, e grande é esta diferença, entre manifestar e emanar. Aparecimento por manifestação significa que uma coisa simples, se mostra em inúmeras formas. A semente, por exemplo, é coisa simples, dotada das perfeições vegetativas, que ela manifesta numa infinidade de formas, resolvendo-se a si própria em ramos, folhas, flores e frutos. Isto é aparecimento por manifestação. No aparecimento por emanação, a Unidade Verdadeira permanece no sublime estado de Sua santidade e a existência das criaturas Dela emana – não é por Ela manifestada. Tomemos o sol como exemplo: dele emana a luz que se irradia sobre todas as criaturas, mas o sol continua na elevada condição de sua santidade: não desce, não se resolve a si próprio em formas luminosas; não aparece na substância das coisas mediante a especificação e individualização destas; o preexistente não se torna o fenomenal; a riqueza independente não se converte em pobreza encadeada; a pura perfeição não se transforma na imperfeição absoluta.

Recapitulando: os sufis admitem Deus e a criatura, e dizem que Deus se resolve a Si Próprio nas infinitas formas das criaturas, manifestando-se assim como o mar se manifesta nas inúmeras formas das ondas, as quais, embora sejam fenomenais, imperfeitas, são a mesma coisa do Mar Preexistente, ainda que este seja a soma de todas as perfeições divinas. Os Profetas, ao contrário, crêem que há o mundo de Deus, o mundo do Reino e o mundo da criação – três coisas. A primeira emanação de Deus é a graça do Reino, que emana e se reflete na realidade das criaturas, assim como a luz que emana do sol e resplandece nas criaturas; e esta graça, que corresponde à luz, se reflete em inúmeras formas na realidade de todas as coisas, especificando e individualizando-se segundo a capacidade, o merecimento e o valor intrínseco das coisas. Mas a afirmação dos sufis requer a descida da Riqueza Independente para o grau da pobreza; exige que o Preexistente se limite às formas fenomenais, e que o Poder Puro se restrinja ao estado da fraqueza, de acordo com as limitações dos seres contingentes. É este um erro evidente. Observai que a realidade do homem – de todas as criaturas a mais nobre – não desce à realidade do animal, e que a essência deste, dotado dos poderes de sensação, tampouco se reduz ao grau do vegetal, nem a realidade do vegetal, ou seja o poder do crescimento, se abaixa à realidade do mineral.

Numa palavra, a realidade superior não desce, não se abaixa às condições inferiores. Como seria possível, pois, a Realidade Universal de Deus, livre que é de toda descrição e qualificação, e não obstante Sua santidade e pureza absoluta, resolver-se a Si Própria nas formas das realidades das criaturas, as quais são fontes de imperfeições? É pura imaginação, inteiramente inconcebível.

Pelo contrário, essa Santa Essência é a soma das perfeições divinas, enquanto que todas as criaturas são favorecidas pela graça do resplendor através de Sua emanação, recebendo a luz, a perfeição e a beleza de Seu Reino, assim como toda as criaturas terrestres obtêm a graça da luz dos raios do sol, embora este não desça, não se abaixe às realidades favorecidas dos seres terrestres.

Em vista de ser tarde a hora, não há tempo para se explicar mais...

 

Notas:

1.       Embora, como explica 'Abdu'l-Bahá, a ideia seja de origem antiga, sua história no pensamento islâmico começa com Ibnu'l-'Arabí (1165-1240). “Ibnu'l-'Arabí é um monista completo, e o nome dado à sua doutrina (vadatu'l-vujúd, a unidade da existência) a descreve com justiça. Ele sustenta que todas as coisas preexistem como ideias no conhecimento de Deus, de onde emanam e para onde finalmente retornam”. RA Nicholson, “Misticismo”, O Legado do Islam, ed. Sir Thomas Arnold e Alfred Guillaume (Oxford University Press, 1931), p. 224

2.       Cf. Plotino, Ennead 5.2.1: “O Um é todas as coisas e não uma única delas…” (trad. de Armstrong); e Platão, Parmênides 160b2-3: “Assim, se há um Um, o Um é tanto todas as coisas quanto nada, igualmente com referência a si mesmo e aos Outros” (tradução de Cornford). Na tradição dos filósofos islâmicos, alguns dos escritos de Plotino são atribuídos a Aristóteles.

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