Por Guilherme Bitencourt
Segundo a mitologia suméria datada de 2000 a.C., emerge a
figura de Enki Du, um ser selvagem esculpido das próprias entranhas da terra,
que escolheu habitar harmoniosamente com as criaturas da floresta. Enki Du, à
semelhança do icônico Adão bíblico, desfrutava de um dom peculiar: a
comunicação fluente com os animais. Todavia, os caminhos do destino tomaram um
novo rumo quando uma sacerdotisa do templo de Ishtar cruzou seu caminho,
lançando um encanto irresistível. Após um encontro de paixão ardente, Enki Du
perdeu sua habilidade de diálogo com as bestas e encontrou seu refúgio nas
entranhas da cidade. Enquanto Adão bíblico foi expulso do idílico Jardim do
Éden, Enki Du se despediu da exuberante floresta. Um, cedeu à tentação da fruta
proibida, o outro, aos encantos de uma sacerdotisa. Esses paralelos,
entretanto, são apenas a ponta do iceberg.
A mitologia dos antigos egípcios, cuja riqueza simbólica é
inegável, também nos presenteia com referências ao barro e à argila, por meio
da figura divina de Khnun, conhecido como Quenúbis na tradição grega. Khnun, o
criador divino, esculpia seres de argila na roda do oleiro, concedendo-lhes
vida ao inseri-los no seio materno.
As terras africanas ecoam a história do barro em suas
mitologias. Entre os iorubás e os daomeanos, encontramos narrativas que ressoam
com o mito de Nanã. Ela, a Senhora da Vida, associada às águas paradas e à lama
dos pântanos, presente na criação do homem. Em sua jornada, Nanã mergulhou até
o fundo de um lago e retirou a lama que, entregue a Oxalá, serviu como
matéria-prima para a moldagem da humanidade. Assim, o sopro de Olorum infundiu
a vida naquele que fora esculpido do barro.
No panteão grego, surge o cativante mito de Prometeu. Os
irmãos Prometeu e Epimeteu, incumbidos por Zeus de modelar os seres vivos e o
homem a partir do barro, desencadeiam uma revolução ao roubar o fogo do Olimpo
e entregá-lo aos homens. O gesto audacioso de Prometeu conferiu à humanidade
superioridade sobre os outros seres vivos. Contudo, esse ato não passou
despercebido aos olhos de Zeus, que o condenou a um suplício incessante,
amarrando-o a uma rocha e expondo seu fígado para ser diariamente devorado por
uma águia.
A leitura dessas narrativas mitológicas, provenientes de diversas culturas e crenças, revela uma conexão profunda, ainda que simbólica, com a criação a partir do barro. O entendimento precisa transcender a interpretação literal para abraçar o simbolismo inerente a essas histórias. O eminente psicólogo Carl Gustav Jung, em sua obra "Arquétipos do Inconsciente Coletivo," explora o simbolismo como uma chave para a compreensão:
"O homem primitivo não busca explicações objetivas do óbvio; em vez disso, sua alma inconsciente anseia por interpretar experiências sensoriais externas como eventos da alma. Para o primitivo, a observação do nascer e do pôr do sol não é meramente um fenômeno natural, mas um evento espiritual, onde o Sol encarna o destino de um deus ou herói que reside, em última instância, na alma humana."
Jung argumenta que essa projeção persistiu ao longo dos milênios e só recentemente começou a se desconectar de suas origens externas. Assim, as parábolas foram adotadas como veículos de ensinamento, como exemplificado por Jesus. Segundo a Bíblia, quando questionado por seus discípulos sobre o uso de parábolas, Jesus respondeu:
"Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é dado; Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado. Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não veem; e, ouvindo, não ouvem nem compreendem."
— Mateus 13:11-13
A explicação, segundo alguns comentaristas bíblicos, é que o estado espiritual do povo naquela época tornava obscura sua fé, e as parábolas facilitavam a compreensão das verdades espirituais. Isso está em harmonia com a observação de Jung sobre o homem primitivo, que não buscava explicações objetivas, mas sim interpretações simbólicas.
Mencionando Jesus e os judeus, não podemos ignorar o ponto de vista judaico sobre interpretações simbólicas. Moshé Ben Maimon, também conhecido como Maimônides, explica que, apesar da importância da criação conforme o Antigo Testamento, nossa capacidade de compreender tais conceitos é limitada. Em suas palavras:
"Por outro lado, a questão da Criação é muito importante, por outro lado, nossa capacidade de entender tais conceitos é muito limitada. (...) Foi descrito em metáforas, para que as massas pudessem entender a Criação de acordo com a sua capacidade mental, enquanto os cultos entenderiam de uma maneira diferente."
O renomado Rabino Abraham Ibn Ezrah complementa essa ideia, afirmando:
"Se houver algo na Torá (Antigo Testamento) que contradiz a razão (...) então, aqui, devemos procurar a solução numa interpretação figurativa..."
Ambos os rabinos reconhecem a necessidade e a importância da interpretação figurativa, semelhante ao exemplo de Jesus, que transmitia a Revelação em forma de parábolas para que as massas pudessem compreender.
No tocante ao Islã, o Alcorão também menciona a criação de Adão a partir do barro, mas sob uma perspectiva simbólica. Diferentemente de verso corânico que menciona a criação de todos os seres vivos a partir da água:
"Deus criou todas as criaturas [vivas] da água, e delas são as que se movem sobre as barrigas, e delas são as que andam sobre duas pernas, e delas são as que andam em quatro [...]."
— Alcorão 24:45
Essa visão encontra eco na ciência moderna, onde se reconhece que a vida na Terra se originou da água, respaldada por teorias como a do cientista soviético Alexander Oparin e o biólogo inglês J.B.S Haldane.
Portanto, a compreensão dessas histórias como simbólicas, e não literais, é fundamental para reconciliar as crenças religiosas com o conhecimento científico. Como afirma Baha'u'lláh, o fundador da Fé Bahá'í:
"Sabe
tu, verdadeiramente, que o propósito fundamental de todos esses termos
simbólicos e alusões abstrusas que emanam dos Reveladores da santa Causa de
Deus, é a provação dos povos do mundo; para que, deste modo, o terreno dos
corações puros e iluminados se distinga do solo estéril e perecedor."
— Kitab-I-Iqan, pág.34
Assim, a interpretação simbólica é uma ferramenta crucial
para compreender os ensinamentos religiosos e reconciliá-los com os avanços da
ciência. Ao explorar o simbolismo nas narrativas mitológicas e religiosas,
podemos vislumbrar uma rica tapeçaria de sabedoria que transcende as fronteiras
culturais e temporais.
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