![]() |
| Os livros sagrados, a Bíblia e o Alcorão |
Um diálogo sincero com um amigo cristão levou-me a refletir sobre uma das questões mais profundas e, talvez, mais mal compreendidas das religiões reveladas: a da crucificação e da ressurreição de Jesus Cristo, e a maneira como tais eventos se harmonizam — ou aparentemente entram em conflito — entre a tradição cristã, o Islam e a Fé Bahá’í. O questionamento de meu interlocutor nascia de uma perplexidade comum: como pode a Fé Bahá’í sustentar, como um de seus princípios centrais, a Unidade das Religiões, se o Alcorão parece negar a crucificação de Jesus, enquanto os Evangelhos a afirmam como o cerne da salvação cristã? Essa interrogação, que à primeira vista parece comprometer a coerência da visão bahá’í, é, na realidade, uma porta luminosa para se compreender o profundo mistério da Revelação divina e sua continuidade ao longo das eras.
Bahá’u’lláh, o Fundador da Fé Bahá’í, declarou que “todas as Religiões de Deus emanam de uma única Fonte e são raios de uma mesma Luz”. Isso implica que, sob as múltiplas formas externas e as aparentes divergências doutrinárias, existe uma essência única, imutável e indivisível: a Verdade Divina. Assim como as estações do ano se sucedem e cada uma traz um aspecto da mesma luz solar, as Religiões Divinas são manifestações progressivas da mesma Vontade. Essa é a base da doutrina bahá’í da revelação progressiva, pela qual se compreende que Moisés, Jesus, Muhammad e Bahá’u’lláh são diferentes espelhos de uma mesma Realidade Eterna.
Contudo, essa harmonia não é superficial, e só se torna evidente quando o homem se liberta da imitação cega e da leitura literalista dos textos sagrados. Como ensina Bahá’u’lláh no Kitáb-i-Íqán, o Livro da Certeza, “o homem deve investigar a verdade por si mesmo, libertando-se dos grilhões da tradição e do preconceito herdado”. Essa investigação é a chave para penetrar o significado espiritual das Escrituras, pois “a letra mata, mas o espírito vivifica”, como já advertira São Paulo.
O cerne da controvérsia repousa em um versículo do Alcorão que, durante séculos, gerou debates entre exegetas muçulmanos e perplexidade entre cristãos:
“E por dizerem: ‘Nós matamos o Messias, Jesus, filho de Maria, o Mensageiro de Deus’. Mas eles não o mataram, nem o crucificaram; foi apenas feito que assim lhes parecesse.” (Alcorão 4:157)
Muitos intérpretes, desde os primeiros séculos do Islam, entenderam esse versículo como uma negação absoluta do evento da crucificação, desenvolvendo teorias segundo as quais Deus teria substituído Jesus por outro homem semelhante, poupando-O da morte. Essa ideia, contudo, não se encontra explicitamente no texto corânico, mas provém de fontes apócrifas e tradições gnósticas pré-islâmicas, que penetraram a literatura tafsír posterior. Quando examinamos o texto em seu próprio contexto linguístico e espiritual, percebemos que o versículo não nega o evento histórico da crucificação, mas refuta a alegação arrogante dos inimigos de Jesus de terem triunfado sobre Ele.
O Alcorão não diz que Jesus não morreu, mas apenas que “eles” — isto é, os que se vangloriavam de tê-lo matado — não o mataram. Essa distinção é fundamental. Em outros trechos, o Alcorão afirma claramente: “Ó Jesus! Porei termo à tua estada na terra (mutawaffeeka) e elevar-te-ei até Mim” (3:55) e “Quando quiseste encerrar os meus dias na terra (tawaffaytanee), foste Tu o seu único observador” (5:117). As expressões árabes tawaffá e mutawaffá são amplamente empregadas no Alcorão para designar o ato de Deus recolher a alma no momento da morte. Assim, a Escritura muçulmana não nega a morte de Cristo, mas sublinha que Sua morte se deu por decreto divino, não pela vontade dos homens.
Os estudiosos ismaelitas do século X e XI — como al-Mu’ayyad fi’l-Din al-Shirazi, Abu Yaqub al-Sijistani e os Irmãos da Pureza (Ikhwan al-Safa’) — reconheceram a historicidade da crucificação, vendo nela um mistério espiritual. Para eles, negar o evento seria contrariar o testemunho das duas comunidades que o presenciaram — a judaica e a cristã —, bem como empobrecer o significado teológico do sacrifício. O próprio al-Mu’ayyad fi’l-Din afirmou que negar a crucificação era “negar a evidência dos sentidos e a veracidade dos Mensageiros de Deus que a confirmaram”.
A mesma compreensão espiritual encontra eco em tradições sunitas e xiitas. O Imam al-Ghazali, uma das mais altas autoridades do pensamento islâmico, admitia que Jesus havia sido crucificado, mas que sua alma foi exaltada por Deus, tornando a crucificação um sinal de vitória espiritual. O Alcorão, ao dizer que “Deus o elevou até Si” (4:158), transforma a morte de Cristo em ascensão, não em fracasso.
Esse entendimento é corroborado por uma análise histórica. Os Evangelhos narram que Jesus foi condenado pelo Sinédrio, o conselho religioso judaico, mas executado pelos romanos, sob a autoridade de Pôncio Pilatos. O Alcorão, portanto, ao dizer “eles não o mataram”, desfaz a arrogância dos que se vangloriavam de tê-lo feito perecer e restitui a glória a Deus, que transformou o suplício da cruz em instrumento de redenção espiritual.
A Fé Bahá’í, ao interpretar esses textos, não se detém na letra, mas penetra o espírito. Em carta escrita em nome de Shoghi Effendi, o Guardião da Fé, lemos: “Embora os judeus tenham conseguido destruir o corpo físico de Jesus, eles eram impotentes em destruir a realidade divina Nele” (Lights of Guidance, n. 1669). Essa frase resume a harmonia essencial entre o Evangelho e o Alcorão: os homens puderam ferir o corpo do Filho do Homem, mas não puderam extinguir Sua Luz.
O erro, portanto, está em tomar por contradição o que é apenas diferença de enfoque. O cristianismo, enfatizando o aspecto histórico e redentor da crucificação, vê nela o ponto culminante da economia da salvação. O Alcorão, enfatizando o poder soberano de Deus, nega que a morte de um Profeta possa ser uma derrota, e exalta a vitória espiritual do Messias. Bahá’u’lláh vem, então, reconciliar as duas visões: confirma a crucificação histórica e esclarece seu significado espiritual, mostrando que a vitória de Cristo foi a vitória do Espírito sobre a matéria, da Verdade sobre o erro.
Quanto à ressurreição, também aqui a Revelação Bahá’í lança luz sobre o que foi obscurecido por séculos de literalismo. Bahá’u’lláh explica no Kitáb-i-Íqán que “Ressurreição” não se refere ao retorno físico de corpos sepultos, mas ao despertar espiritual que ocorre quando surge um novo Manifestante de Deus. Ele afirma que “alcançar a Presença Divina” significa reconhecer e se aproximar do novo Mensageiro, em quem resplandece novamente a Luz da mesma Realidade Divina. Assim, a ressurreição dos mortos é a revitalização das almas que, por meio da nova Revelação, despertam do sono da negligência e recebem vida eterna.
‘Abdu’l-Bahá, o filho e intérprete autorizado de Bahá’u’lláh, desenvolve esse ensinamento com clareza: “A ressurreição de Cristo não foi o retorno do corpo material, mas o despertar de Seus discípulos, que após a Sua ascensão tornaram-se conscientes da força de Sua Palavra e do poder de Seu Espírito.” Quando os discípulos, antes temerosos e dispersos, reuniram-se e proclamaram com coragem o Evangelho, naquele momento, Cristo havia “ressuscitado” no mundo — não na carne, mas no coração da humanidade.
Shoghi Effendi confirma isso: “Nós não acreditamos que houve uma ressurreição corporal após a crucificação de Cristo, mas que houve um tempo após Sua ascensão em que Seus discípulos perceberam espiritualmente Sua verdadeira grandeza e compreenderam que Ele era eterno em ser.” (Carta de 9 de outubro de 1947).
Dessa forma, a Fé Bahá’í não nega o milagre cristão, mas o interpreta em sua dimensão mais elevada, libertando-o da limitação material e revelando sua glória interior. A crucificação é o sacrifício; a ressurreição é a vitória do Espírito; e ambas são sinais da mesma verdade eterna que se manifesta em todas as dispensações.
O princípio da Unidade das Religiões emerge, então, com clareza e majestade. As aparentes contradições desaparecem quando compreendemos que os Mensageiros de Deus falam segundo a capacidade espiritual de suas épocas e povos. O mesmo Sol da Verdade brilha em horizontes distintos, e os véus das formas religiosas são apenas expressões transitórias de uma única substância divina. Moisés trouxe a Lei, Jesus trouxe o amor e o sacrifício, Muhammad trouxe a submissão à Vontade divina, e Bahá’u’lláh revelou a unidade de todas as religiões.
‘Abdu’l-Bahá sintetiza essa visão universal com palavras de incomparável beleza: “As divinas religiões dos santos Manifestantes de Deus são, na realidade, uma só, embora sejam designadas por nomes diferentes. O homem deve amar a luz, não importa de que lâmpada ela irradie; deve buscar a verdade, não importa de que fonte ela provenha. Apego à forma é ilusão; amor à substância é fé.” (O Novo Jardim, p. 61).
O Alcorão, o Evangelho e o Kitáb-i-Íqán, longe de se contradizerem, formam um tríplice testemunho de uma mesma realidade espiritual: a de que o Espírito de Cristo é eterno, e a de que a Vontade de Deus conduz, em todas as eras, a humanidade à compreensão progressiva de Sua Verdade. Quando se penetra o sentido interior das Escrituras, torna-se impossível ver nelas conflito ou exclusão, pois cada uma reflete um grau do mesmo Esplendor divino.
O verdadeiro buscador, portanto, não se detém na superfície das palavras, mas mergulha nas profundezas do significado. Ele descobre que, no mistério da cruz, resplandece o mesmo Espírito que falou no Sinai, em Belém, em Meca e em Teerã. A Fé Bahá’í não destrói o Evangelho nem o Alcorão — ela os cumpre, harmonizando-os sob a luz do mesmo Deus que inspirou ambos.
Assim, o Cristo do Calvário e o Jesus do Alcorão são o mesmo Ser glorioso. A cruz não foi negação, mas exaltação; a morte não foi derrota, mas triunfo. E a ressurreição, longe de ser um evento físico, é a perpetuação da Vida divina no coração dos homens. Bahá’u’lláh, como o prometido de todas as religiões, convida a humanidade a enxergar essa unidade, a reconhecer que “a religião é uma só, e sua fonte é o mesmo Deus”.
Aqueles que buscam a verdade, e não a forma, compreendem finalmente que a luz da unidade divina brilha por trás de todos os véus. E quando essa luz é percebida, cessa o conflito entre cristãos e muçulmanos, entre fé e razão, entre céu e terra. Porque, em última análise, o que o Alcorão quis afirmar, o Evangelho quis testemunhar, e Bahá’u’lláh veio confirmar: que Deus é um, que Suas manifestações são uma só, e que a verdade revelada em tempos distintos é sempre a mesma — eterna, luminosa, inviolável.
Bibliografia:
-
Alcorão Sagrado, trad. Mansour Challita, Rio de Janeiro: Garnier, 2002.
-
Bahá’u’lláh. Kitáb-i-Íqán (O Livro da Certeza). Haifa: Bahá’í World Centre, 1989.
-
Bahá’u’lláh. Gleanings from the Writings of Bahá’u’lláh. Haifa: Bahá’í World Centre, 1976.
-
‘Abdu’l-Bahá. Some Answered Questions. Haifa: Bahá’í World Centre, 2014.
-
Shoghi Effendi. Lights of Guidance: A Bahá’í Reference File. New Delhi: Bahá’í Publishing Trust, 1988.
-
Fatheazam, Hushmand. O Novo Jardim. São Paulo: Editora Bahá’í do Brasil, 1995.
-
Oliveira, Marco. Terapia Divina. Lisboa: Edições Bahá’í, 2004.
-
Nasr, Seyyed Hossein. Ideals and Realities of Islam. Chicago: ABC International Group, 1994.
-
Corbin, Henry. History of Islamic Philosophy. London: Kegan Paul, 1993.
-
Amir-Moezzi, Mohammad Ali. The Divine Guide in Early Shi‘ism. Albany: SUNY Press, 1994.
-
Schäfer, Peter. Jesus in the Talmud. Princeton: Princeton University Press, 2007.
-
Watt, W. Montgomery. Muhammad at Medina. Oxford: Clarendon Press, 1956.
-
Asad, Muhammad. The Message of the Qur’an. Gibraltar: Dar al-Andalus, 1980.

